Viagem a Espanha: das castanholas à pintura

A grandeza de Espanha não é só no futebol, nem no mapa. A paella mal cabe no prato, o flamenco mal cabe no palco, Picasso não coube na pintura.
O grande adversário de Portugal na fase dos grupos quer voltar a subir ao palanque dos troféus, de que tem ainda memória fresca. Nos ângulos retos do relvado, ou nas linhas surrealistas da pintura, a Espanha é sempre grande.
Futebol atual
No último Mundial, há quatro anos, partiu com o estatuto de campeão do Mundo e da Europa, e como primeiro classificado no ranking da FIFA. Agora, parte para a competição na Rússia como a sexta seleção melhor cotada na tabela. Pelo meio, o afastamento na fase de grupos do Mundial 2014 e a eliminação nos oitavos de final do Europeu 2016, em França. A renovação aconteceu naturalmente, a começar pelo comando técnico: Vicente Del Bosque colocou ponto final numa brilhante etapa de oito anos à frente de La Roja, onde ganhou praticamente tudo, e entrou o nosso conhecido Julen Lopetegui. Neste caso, um regresso às seleções espanholas, depois de ter sido campeão europeu nas categorias sub-19 e sub-21, aproveitando as gerações de 94/95 (Grimaldo, Denis Suarez, Kepa ou Deloufeu) e a de 90/91/92 (De Gea, Bartra, Isco, Morata ou Thiago Alcântara).
Na qualificação para o Mundial da Rússia, só uma selecção - Alemanha - fez mais pontos que Espanha, que venceu nove das dez jornadas, e só cedeu pontos com Itália... que acabaria por ficar de fora da competição. Julen Lopetegui ja não conta com Casillas, Xavi, Xabi Alonso ou David Villa mas tem conseguido tirar rendimento de futebolistas como Rodrigo, Saul Ñiguez, Asensio, Isco ou Odriozola, que vão participar pela primeira vez num Mundial. Uma seleção que renasceu dos últimos dois fracassos e volta a ser favorita, ou não deixasse fora dos eleitos jogadores como Vitolo, Morata, Juanfran, Bellerin ou Marcos Alonso. Tal como em anos anteriores, é difícil escolher uma estrela... entre várias estrelas! Iniesta já não está no auge da carreira mas é sempre fundamental. De Gea é, nesta altura, um dos melhores do mundo entre os postes. Ramos é um dos centrais com mais carisma na competição e Piqué um dos melhores centrais do mundo. Isco, Vasquez ou Asensio podem explodir na Rússia, mas elegemos David Silva como o mais importante da La Roja. Aos 30 anos, foi fundamental para devolver os títulos ao Manchester City, com golos e assistências. Um estatuto de intocável que se estende à seleção espanhola e que vamos ver em ação contra Portugal, logo no segundo dia de competição.
No Podcast "11 inicial" pode ouvir a discussão à volta da forma como foi formado o grupo de Portugal, com Espanha, Marrocos e Irão.
Tiki tacadas da Armada (quase) Invencível
Durante anos a fio, a seleção espanhola era aquela equipa maior nos prognósticos do que nos resultados propriamente ditos. As esperanças eram sempre grandes mas no fim o famoso adepto Manolo lá acabava por arrumar triste o bombo, de volta mais cedo para casa, tal como os seus compatriotas. O sonho ficava adiado por mais dois anos, para o Euro ou para o Mundial. Até ao dia em que o Manolo da boina saiu radiante do estádio, baquetando eufórico o seu tambor da La Roja.
Esse dia aconteceu em 2008, quando se mudou o paradigma e se iniciou um dos maiores ciclos vitoriosos da história do futebol mundial: campeões da Europa em 2008, campeões do mundo em 2010, campeões da Europa em 2012. A Espanha, agigantada pelo tiki-taka do FC Barcelona (a tática da constante posse de bola inventada por Cruijff e aprimorada por Guardiola), parecia imparável como se fosse a Armada Invencível do século XVI do rei Filipe II de Espanha. Triangulações atrás de triangulações - de Xavi para Iniesta, de Iniesta para Villa - até a bola pousar nas redes e onde o adversário é o mero figurante que termina o jogo cabisbaixo. Casillas era o homem que defendia tudo, que não se cansava de levantar as taças, nem de receber o beijo em direto da flash-repórter Sara Carbonero - como se o Mundial 2010 fosse uma novela com final feliz esperado. Hoje a Espanha já ganhou tudo o que é o mais importante de futebol: um campeonato do mundo (2010), três campeonatos da Europa (1964, 2008 e 2012) e uma medalha de ouro nos Jogos Olímpicos (em 1992).
A nível clubístico, o sucesso internacional está enraízado desde o início das competições continentais. O Real Madrid de Di Stefano ganhou as cinco primeiras Taças dos Campeões Europeus (de 1955-56 a 1959-60), o FC Barcelona tomou o gosto às primeiras Taças das Feiras (o antecedente da Taça UEFA, hoje Liga Europa). Hoje, quase que dividem as vitórias das últimas Ligas dos Campeões, que mais parece uma Copa del Rey com convidados internacionais, onde nas finais perde sempre o Atletico Madrid, o grande espanhol que falhou o salto para o estatuto de gigante que os dois rivais do El Clásico auferem. Mas a grandeza do mapa espanhol permite outros grandes clubes: os bascos Athletic Bilbao e Real Sociedad a norte, Valencia a leste e os andaluzes Sevilha e Bétis de Sevilha a sul.
Raça cigana
O magnetismo do olhar estrangeiro vai para o flamenco, quando se trata da música. Dançarinos raçudos e bravos - homens ou mulheres, em pares ou em solos - acompanhados por virtuososos dedilhados de guitarra, palmas e um cante cigano do fundo da alma formam uma tertúlia musical única. De origem nos clãs ciganos e com epicentro na Andaluzia, não espanta ninguém que o flamenco seja hoje o Património Imaterial da Humanidade da UNESCO. O género espanhol mais carismático foi-nos dando uma série de cantores ciganos lendários como Fernanda de Utrera (1923-2006) ou Manolo Caracol (1909-1973), ou também o bailarino internacional Joaquín Cortés, sempre de peito musculado saliente e pé firme na sua dança sapateada. A partir da guitarra, o flamenco tem lançado o seu suão a outros estilos, de que é símbolo Paco de Lucia, símbolo do nuevo flamenco. O instrumento percussivo mais famoso é de longe as castanholas, manuseadas normalmente por mulheres impecavelmente vestidas de sevilhanas e que se tornou por si só um ex-líbris espanhol.
Mas, de Espanha, o público português foi-se familiarizando também com os cantores românticos, o mais óbvio e intemporal Julio Iglésias, mas o mais recente é claramente Pablo Alborán. Os grandes tenores, jogando as regras da pop, têm também grande impacto comercial, como o madrileno Plácido Domingo e os catalães José Carreras e Montserrat Caballé.
Os festivaleiros portugueses conhecem bem, nem que seja de nome, alguns dos grandes festivais espanhóis, com cartazes bem recheados, só à altura de grandes orçamentos e patrocínios. Junto ao mar e às praias (e às milhares de piscinas), há o Benicàssim. Num ambiente mais urbano como Barcelona, temos o eletrónico Sónar ou o mais transversal Primavera Sound, tão transversal que já assentou arraiais há vários anos no Parque da Cidade, no Porto, com a atual designação de NOS Primavera Sound. E já que estamos no indie, há uma banda de meninas garagerockers, as Hinds, que já estão a conquistar algum culto por cá, como tem sido visível nas suas atuações em Portugal.
Vermelhão
O prato espanhol mais famoso e de maior expansão nacional é sem dúvida a largajona e apetitosa paella valenciana, uma grande arrozada com camarões e mariscos afins, pedaços de frango, linguiças e ervilhas, molhadinho de caldo de galinha. Também em tons avermelhados, temos o gaspacho, a grande sopa de verão andaluz, também muito comida (embora noutros moldes) no Alentejo, que além do tomate, denota alguns pontos em comum com a nossa cozinha como a tendência para se usar alhos e azeite.
Apesar de alguns pontos em comum com a nossa cozinha, há algumas diferenças na qualidade. A charcutaria espanhola é de meter inveja, nomeadamente o presunto (jámon) e o chouriço. Já a fruta e legumes espanhóis, muitos aguados e sensaborões (e que enchem desnecessariamente os nossos supermermados), merecem a má fama. A tortilha, uma espécie de omoleta mais abatatada que repesca outras coisas como o chouriço, é uma solução de cozinha que nos é familiar, tal como os calamares. Os pimentos padrón, conotados com a Galiza, também são uma tentação espanhola facilmente reconhecida pelos portugueses, habituados a comprar em feiras o célebre torrão de Alicante, o paralelepípedo doce composto de mel, claras e amêndoas.
A cozinha galega tem muitas semelhanças com a nossa, nomeadamente a inclinação para o peixe, a partir do tesouro comum do Atlântico. O mágico oceano é generoso para com os galegos no rodovalho, região também famosa pelo polvo – o chamado pulpo gallego. Petiscar é com os espanhóis, isto é, o povo vizinho adora tapas, pratinhos de todo o tipo de snacks (calamares, saladas, atum, pães, azeitonas) que decoram milhões de balcões dos restaurantes e cafés de toda a Espanha, devidamente acompanhados por uma cervejinha.
Nas Astúrias, abundam as favas, que dão as famosas favadas (o grande prato robusto da região dos Picos da Europa), e as maçãs, que fornecem a famosa sidra asturiana, a bebida esverdeada que exige a pontaria de ser servida pelos empregados em grande altura até salpicar no copo espumoso lá em baixo. Se sair para fora não há problema, muitos dos pisos das sidrerias tem já serradura para secar o líquido alcoólico que cai no chão. A sidra asturiana, o chamado "vinho das maçãs", não tem nada a ver com as sidras gaseficadas que nos chegam do norte da Europa. A asturiana é bem melhor e mais natural. Não muito longe, é onde está a região vinícola de La Rioja que dá um dos mais famosos vinhos espanhóis em todo o mundo. Mais licoroso, mas igualmente internacional, é o Jerez de la Frontera. Entre as bebidas não alcoólicas, o grande refresco natural é a horchata de chufa, bebida esbranquiçada e doce (mas sem açúcar), comummente servida em gelatarias/horchaterias, tirada delicadamente por colheres gigantes diretamente para o copo, sobretudo nas regiões da Comunidade Valenciana e da Catalunha.
É na Catalunha que esteve o restaurante classificado como o melhor do mundo, El Bulli, do chef Ferran Adrià - autêntica estrela mundial da gastronomia... Em Portugal, os restaurantes de tapas vão-se diluindo indistintamente na restauração nacional, sem distinção patriótica, mas onde se reconhece o cunho espanhol.
Fiesta!
Para os portugueses, a Espanha começava nos rebuçados que se compravam em Badajoz ou no barco do Guadiana que fazia a travessia de Vila Real de Santo António para Ayamonte (quando não havia ponte), onde nos esperavam produtos que ainda não havia no nosso país e que podiam ser comprados em escudos - as caixas das lojas de Ayamonte eram uma misturada de notas portuguesas espanholas. Mas muitas vezes, a Espanha começava Portugal adentro, via antena televisiva, onde as grandes séries internacionais, dobradas em espanhol, chegavam primeiro aos dois canais visíveis da TVE. Mas não foi preciso apanhar a TVE para a criançada portuguesa acompanhar as aventuras soalheiras da série adolescente espanhola "Verão Azul", naquele cenário mediterrânico. Provavelmente, são essas mesmas antigas crianças, hoje adultos, que se deliciam com a trama policial de "La Casa de Papel", que tem merecido posts e posts de adoração nas redes sociais.
A Espanha era também folheada, por mãos portuguesas, na revista Hola! (que muitos dos nossos chavamam erradadamente de ihola por causa do primeiro ponto de exclamação), que permitia acompanhar a atualidade das várias famílias aristocráticas europeias, incluindo a Família Real Espanhola. A Espanha toma hoje as ruas portuguesas, através dos vários bancos, das lojas de roupa de Zara, já para não falar do El Corte Inglés, que é sem margens para dúvidas, uma das maiores superfícies comerciais de Lisboa.
Vários contrastes se sentem quando se atravessa a fronteira, seja nas ruas fantasma com lojas fechadas à hora da siesta, seja nas praças cheias de gente à noite, que nos permite perceber que os espanhóis são o povo mais noctívago da Europa. De Espanha vêm também no período pascoal aquelas notícias embaraçosas dos maus comportamentos da estudantada portuguesa em Benidorm e noutras localidades costeiras. São conhecidas as touradas de morte - que mitificaram o toureiro Manolete (1917-47) – e aquela corrida desenfreada de gente de branco a fugir dos touros do Festival de San Fermín, às vezes com mortos, pelas ruas de Pamplona.
A grandeza cultural de Espanha é do tamanho do mapa e está logo à vista na pintura, engrandecida logo no renascimento pelas obras barrocas de Velásquez (1599-1660), e bem continuada séculos mais adiante pelo mais macabro Francisco Goya (1746-1828), até aos emblemáticos surrealistas como Pablo Picasso (1881-1973), Salvador Dalí (1904-1989) ou Joan Miró (1893-1983). A arquitetura pode ter formas esculpidas, que o diga Antoni Gaudí (1852-1928), que encheu de fantasia a paisagem urbana de Barcelona, ou mesmo o visionário do futuro Santiago Calatrava, que desenhou a Gare do Oriente, em Lisboa. Como a imagem é mesmo uma especialidade espanhola, não surpreende que o cinema espanhol também dê cartas: Luis Buñuel começou como herdeiro direto do surrealismo até evoluir na sátira que faz chocar o sagrado com o profano, um embate também ao gosto do mais urbano e oscarizado Pedro Almodóvar, que ajudou a lançar as carreiras internacionais dos atores Antonio Banderas e Penélope Cruz. O marido desta última é nada mais nada menos que Javier Bardem, outro ator espanhol bem instalado em Hollywood. A Espanha deu-nos ainda um dos grandes clássicos da literatura mundial: "Dom Quixote de La Mancha" (de 1905 e de 1915), escrito por Miguel de Cervantes. Na poesia, um dos maiores foi Federico García Lorca. O grande forasteiro espanholado foi sem dúvida o norte-americano Ernest Hemingway, cujo trabalho jornalístico de cobertura da Guerra Civil Espanhola (1936-39) inspirou uma das suas maiores obras: "Por Quem os Sinos Dobram" (de 1940).
Espanha já não é apenas um potência futebolística, é uma potência desportiva, alavancada pelos Jogos Olímpicos de Barcelona de 1992. Já foram campeões do mundo de basquetebol em 2006 graças aos irmãos Gasol, campeões do mundo de andebol por duas vezes (em 2005 e em 2013), têm um dos melhores tenistas de sempre como Rafael Nadal (que ganhou os quatro Grand Slams, várias Taças Davis, e ainda as medalhas de ouro nos Jogos Olímpicos em individuais e em pares), um conjunto numeroso de ciclistas vencedores do Tour de France (Miguel Induráin fez mesmo uma manita) e ainda têm um bicampeão do mundo de Fórmula 1 como Fernando Alonso e outro em ralis como Carlos Sainz. Como se não bastasse, têm-nos ganho sempre no hóquei em patins e até já ganham medalhas nos Jogos Olímpicos de Inverno. Queriam que os espanhóis se contentassem só com a pelota basca, não queriam?